As cartas a Saddam Hussein
Trecho do capítulo 25 do Livro "Cem
horas com Fidel"
Você acha que a guerra do Iraque era
inevitável?
Em Fevereiro de 2003, umas semanas
antes da guerra, estive na Malásia, na Cimeira dos Países Não
Alinhados e lá, em cuala Lumpur, falei durante muito tempo com os
membros da delegação iraquiana, e com o então vice-presidente Taha
Yassin Ramadan. E disse-lhes: "Se na realidade têm armas químicas,
destruam-nas para facilitar o trabalho dos inspectores da ONU". Era
para eles a única possibilidade de evitar o ataque. E acho que o
fizeram, caso as tenham tido alguma vez. O ataque já estava
decidido, embora não possuíssem essas armas.
Qual é a opinião que tem de Saddam
Hussein?
Em 19991, depois da invasão a Kuwait,
fechou-se numa lógica que conduzia a uma séria crise. Nós votamos em
favor da resolução da ONU que condenava essa invasão. Enviei-lhe
duas cartas com emissários pessoais, recomendando-lhe negociar e
retirar-se a tempo de Kuwait.
Na primeira carta com data 2 de
Agosto de 1990, escrevi-lhe:
"Dirijo-me a si com grande dor pelas
notícias recebidas hoje sobre a entrada de tropas do seu país no
Estado de Kuwait.
Independentemente dos motivos que o
levaram a tão dramática decisão, não posso fazer outra coisa que
expressar-lhe a nossa preocupação pelas graves consequências que
possa acarretar para o Iraque e para o Kuwait, em primeiro lugar, e
para todos os países do Terceiro Mundo. Cuba, apesar dos laços de
amizade que nos juntam com o Iraque, não pode deixar de opor-se a
uma solução militar para o conflito surgido entre o Iraque e o
Kuwait.
A reacção imediata da opinião pública
internacional, informada pelas multinacionais das notícias, cria uma
situação muito perigosa e vulnerável para o Iraque.
Considero muito provável que os
Estados Unidos de América e outros aliados aproveitem a ocasião para
intervir militarmente no conflito e bater fortemente o Iraque. Além
disso, Washington procurará afiançar o seu auto nomeado papel de
gendarme internacional e no Golfo.
Nessa situação, o factor tempo é
decisivo, faço-lhe um apelo para que empregando os bons ofícios da
Liga Árabe ou do Movimento dos Países Não Alinhados, a quem nos
dirigimos com esse propósito, expresse a sua disposição para a
retirada das tropas iraquianas de Kuwait e procurar logo uma solução
política e negociada do diferendo. Esses passos contribuiriam para o
fortalecimento da posição internacional dos países do Terceiro Mundo
perante o papel de gendarme dos Estados Unidos e fortalecerão ao
mesmo tempo a posição do Iraque perante a opinião internacional.
O essencial neste instante é evitar a
intervenção imperialista sob o pretexto de defender a paz e a
soberania de um pequeno país da área. Tal precedente seria funesto
tanto para o Iraque quanto para o resto do Terceiro Mundo.
Uma posição clara do Iraque e os seus
passos decisivos e imediatos em prol da solução política, ajudar-nos-á
a prevenir e frustrar os planos agressivos e intervencionistas dos
Estados Unidos.
Cuba está disposta a cooperar em
qualquer providência que coadjuve a conseguir essa solução.
Estou seguro de que esses pontos de
vista que lhe transmito expressam o sentimento, nestes instantes, de
dezenas de países no mundo que sempre olharam com respeito e estima
o seu país."
Assim concluía aquele nosso apelo
para uma justa e razoável solução.
Pouco tempo depois, em 4 de Setembro
do mesmo ano 1990, em resposta a uma mensagem enviada desde o Iraque,
ratifiquei a posição de princípios expressada com antecedência e
exortei a uma solução política daquela difícil conjuntura que podia
tornar-se ainda mais complexa, sombria e de graves consequências
para o mundo.
Insistimos de novo. Um dos parágrafos
da segunda carta dizia:
Decido-me a escrever-lhe esta
mensagem, que peço que leia e medite, embora pelo seu conteúdo estou
na obrigação de partilhar com Você as minhas reflexões sobre
realidades certamente amargas, mas com a esperança de que possam ser
de utilidade neste momento em que Você deve tomar decisões
dramáticas.
Mais adiante apontava:
Na minha opinião, a guerra será
desatada inexoravelmente se o Iraque não estiver disposto a atingir
uma solução política negociada na base da retirada do Kuwait. Essa
guerra pode ser muito destruidora para a região, e fundamentalmente
para o Iraque, independentemente da coragem com que o povo iraquiano
esteja disposto a lutar.
Os Estados Unidos conseguiram formar
uma grande aliança militar, que inclui além da NATO a forças árabes
e muçulmanas, e no terreno político criaram, perante a grande
maioria da opinião internacional, uma imagem muito negativa para o
Iraque pela sucessão dos factos mencionados, cada um dos quais
provocou profunda reacção e hostilidade nas Nações Unidas e em
grande parte do mundo. Isto é, estão criadas as condições ideais
para os planos hegemônicos e agressivos dos Estados Unidos. Portanto,
o Iraque não poderia travar uma luta em piores condições militares e
políticas. Nessas circunstâncias, a guerra dividiria os árabes por
muitos anos; os Estados Unidos e o Ocidente manteriam uma presença
militar indefinida na região e as conseqüências seriam desastrosas,
não apenas para a nação árabe, mas também para todo o Terceiro
Mundo.
O Iraque se expõe a uma luta
desigual, sem uma justificação política sólida e sem o apoio da
opinião mundial, salvo, logicamente, das simpatias mostradas por
muitos países árabes.
Desta maneira, resumia-se a nossa
percepção da questão e não deixamos de cominar Saddan para que
mudasse a sua posição:
Não deve permitir-se que tudo o que o
povo iraquiano construiu durante muitos anos, bem como as suas
grandes possibilidades futuras, seja destruído pelas armas
sofisticadas do imperialismo. Se existissem razões justificadas e
incontestáveis para isso, eu seria o último em pedir-lhe que
evitasse esse sacrifício.
Aceder ao pedido da grande maioria
dos países membros das Nações Unidas, que solicitam a retirada do
Kuwait, não deve ser considerada jamais uma desonra, nem uma
humilhação para o Iraque.
Independentemente das razões
históricas que o Iraque considera que tem sobre o Kuwait, na verdade
é que a comunidade internacional de forma quase unânime se opõe ao
procedimento utilizado. E nesse amplo consenso internacional se
ampara o desígnio imperialista de destruir o Iraque e apoderar-se
dos recursos energéticos de toda a região.
Mas nenhum desses esforços deu
resultado.
Conheceu pessoalmente Saddam Hussein?
Sim, em Setembro de 1973. Eu estava
em Argel, numa Cimeira dos Não Alinhados, e ia para Hanoi convidado
pelo governo vietnamita. O Vietname ainda não estava totalmente
liberado. Saddam Hussein me recebeu no aeroporto de Bagdad. Naquela
altura ele era o vice-presidente, ainda não era o presidente do
Iraque; era o chefe do partido Bass. Pareceu-me um homem correcto,
foi amável, visitamos a cidade, muito bela, com avenidas largas, as
pontes sobre o Tigris e o Eufrates. Apenas estive lá um dia. Em
Bagdad soube do golpe militar em Chile contra Salvador Allende…
Do ponto de vista militar, como julga
o sistema de defesa utilizado pelas forças iraquianas nessa guerra?
Seguimos com muita atenção essa
guerra desde Março até Maio de 2003. Porquê é que o Iraque não
resistiu? Mistério. Porquê é que não explodiu as pontes para
retardar o avanço das forças norte-americanas? Porquê é quê não
explodiram os depósitos de munições, os aeroportos, antes que
caíssem nas mãos dos invasores? Tudo isso é um grande mistério. Sem
dúvidas, houve chefes que traíram o próprio Saddam.
Todos os países fecharam as suas
embaixadas no Iraque na véspera da guerra salvo vocês. Até quando
ficaram em Bagdad?
A nossa Embaixada foi a última que
ficou em Bagdad. Bom junto com a do Vaticano. Até os russos foram
embora. Só depois da entrada das forças norte-americanas na capital
do Iraque demos a ordem de sair de Bagdad. Não lhe podíamos pedir às
cinco pessoas que estavam na nossa Embaixada que defendessem os
locais contra dois exércitos. Os nossos diplomatas obtiveram salvo-condutos
e conseguiram sair de Iraque sem problema. Os documentos foram
entregue por uma organização internacional, não pelos
norte-americanos.
Como vê a evolução da situação no
Iraque?
Ao meu entender, a resistência
popular vai continuar a se intensificar, enquanto não cessar a
ocupação do Iraque. Aquilo vai ser um inferno, e continuará a sê-lo.
Por isso, o primeiro objectivo deve ser o transpasse imediato do
controlo real às Nações Unidas, e o começo do processo de
recuperação da soberania do Iraque e o estabelecimento de um governo
legítimo, fruto da decisão do povo iraquiano. Mas de uma decisão
autêntica, legítima, e não de eleições realizadas em plena ocupação
militar neo-colonial. Deve também cessar logo a partilha escandalosa
das riquezas do Iraque.
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