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Redação da CARTA MAIOR, São paulo, 2
de outubro de 2014
• João Pedro Stédile, um dos líderes
do MST, qualifica seu voto em Dilma, Tarso Genro e
Olívio Dutra com uma análise crítica da disputa
política em curso
O
gaúcho João Pedro Stédile, 60 anos, um dos
fundadores e principal dirigente do Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra (MST), não tem dúvida quanto
aos números que vai digitar na cabine eleitoral
neste domingo.
Suas
certezas, porém, como as de muitos no campo
progressista, estão longe de significar um cheque em
branco aos escolhidos.
Nessa entrevista exclusiva à Carta Maior, Stédile
qualifica seu voto com uma análise crítica da
disputa política em curso, em sua opinião, ‘apenas o
primeiro round de um intenso período de embates
sobre os rumos da economia e do país, após o
esgotamento dos ‘anos de neodesenvolvimentismo’.
O ciclo de governos progressistas iniciado em 2003
foi importante, no seu entender, ‘para barrar o
neoliberalismo e gerar uma transição, com a retomada
do papel do Estado e a do crescimento com
distribuição da renda’. Mas esgotou seu lastro
histórico. Esse esgotamento tem suas raízes na
mudança da economia internacional, acirrada com a
desordem neoliberal a partir de 2008, e vem
radicalizar a disputa pelo poder no país, que se
manifesta nestas eleições. ‘Tanto é que vários
setores da burguesia antes integrados ao governo,
agora estão na oposição’, observa, fazendo a leitura
estrutural do estilhaçamento subjacente à emergência
da ‘terceira via’, a disputar com o PSDB a
representação dos interesses conservadores.
Lula, na opinião do líder do MST, foi o que melhor
entendeu a profundidade dessa transição. ‘Ele ainda
é a maior liderança popular que temos, percebeu
isso, e foi o grande destaque dos comícios e
intervenções nessa campanha, porque fez a leitura da
situação da luta de classes intrínseca ao processo’.
Os protestos de 2013 acionaram outra sirene
anunciando o crepúsculo de um período histórico.
Caberá a um novo governo Dilma, diz ele, reordenar a
economia e a política com base nesses novos
marcadores: ‘Se não tiver forças para caminhar nessa
direção´(mudar a economia e reformar o sistema
político) teremos quatro anos de instabilidade e o
povo voltará às ruas’, sentencia.
A mutação mais delicada, porém, a história endereçou
ao PT . ‘O maior partido da esquerda, com toda sua
influencia nas massas e nas organizações populares,
abdicou de seu papel de organizador político e
formador ideológico; resignou-se ao medíocre papel
de disputar cargos públicos. Isso o esclerosou
ideologicamente’, dispara Stédile para emendar uma
crítica que soa quase como um desafio de renovação:
‘Como é possível conceber um partido que tem 800 mil
filiados, mas não tem cursos de formação política,
não tem sequer um jornal nacional que oriente o
debate e a militância?’
Leia a seguir a íntegra da entrevista de João Pedro
Stédile a Carta Maior. E assista, ao final, ao
documentário ‘Em busca da terra sem veneno’. Nele, o
líder dos sem-terra aprofunda as correlações entre a
destruição ambiental e a exploração predatória
promovida pelo capitalismo contra a sociedade e a
natureza.
O MST tem se posicionado criticamente em relação
ao governo, sobretudo na questão agrária, mas não
só. Em quem você vai votar no domingo?
Stédile --Vou votar na Dilma, no Tarso Genro,
no Olívio Dutra e nos candidatos a deputado que o
MST apoia no Rio Grande do Sul. Eu e a ampla maioria
do povo brasileiro queremos, no entanto, mudanças.
Mudanças para melhorar as condições de vida do povo.
O neodesenvolvimentismo praticado até agora foi
importante para barrar o neoliberalismo e gerar uma
transição. Resgatou-se o papel do Estado e o
crescimento com distribuição da renda. Porém, essa
política se esgotou, tanto é que vários setores da
burguesia agora estão na oposição. E se esgotou
também por conta da conjuntura econômica
internacional. O próximo mandato precisa fazer
mudanças estruturais, que alterem a política
econômica e com ela o superávit primário e a matriz
tributária. São requisitos para canalizar recursos
necessários aos 10% do PIB na educação, à saúde,
moradia, reforma agrária e aos pesados investimentos
em transporte público de qualidade, que a população
cobra. No campo político, é necessário convocar uma
assembleia constituinte. É o único caminho para uma
profunda reforma no sistema política. Queremos
mudanças também na forma de conduzir a política
agrícola e agrária. Se o governo Dilma não tiver
forças para caminhar nessa direção teremos quatro
anos de instabilidade politica. O povo voltará as
ruas.
Por que, em sua opinião, os governos do PT não
cumpriram integralmente as agendas e compromissos
firmados com os movimentos sociais?
Stédile-- Bem, em primeiro lugar, não
considero os governos Lula e Dilma do PT,
propriamente. Foram governos de composição de
classes, em que estavam todas as classes sociais,
desde o banqueiro Meireles, até os mais pobres do
Bolsa Família. Em termos partidários houve uma
coalização com mais de dez partidos, com o eterno
peso conservador do PMDB e demais oportunistas. Por
outro lado, foram governos que ainda viveram um
período histórico de refluxo dos movimentos massas,
derrotados política e ideologicamente na década de
80, e que não conseguiram ainda retomar a ofensiva
da luta nas ruas. E por fim, o PT como maior partido
da esquerda, com toda sua influencia nas massas e
nas organizações populares, abdicou de seu papel de
organizador político, renunciou ao dever de formador
ideológico, resignou-se ao medíocre papel de
disputar cargos públicos. Por isso, esclerosou-se
ideologicamente. Esperamos que no próximo período
haja uma retomada do movimento de massas. As
mobilizações de junho já foram um sinal de alerta. E
o plebiscito pela Constituinte da reforma política,
com quase oito milhões de eleitores participando,
outro.
Diante da frente única conservadora --que por um
momento parecia levar Marina à vitória contra
Dilma-- o PT mudou seu discurso. Em SP, em um
balanço da campanha, no dia 5 de setembro, Lula
disse que era preciso demarcar o campo de classe da
eleição. É um sinal de mudança também?
Stédile-- A candidatura Dilma teve a sorte de
que a burguesia se dividiu: parte a apoia; parte ao
Aécio e parte a Marina. Eles não encontraram uma
liderança que pudesse expressar a vontade de
mudanças da ótica da direita. Nem Aécio, nem Marina
expressam isso. As campanhas eleitorais foram
sequestradas pelo financiamento das empresas e pela
lógica dos marqueiteiros. Isso tirou o povo da
disputa real. Pior: tirou a possibilidade de debate
real sobre os problemas do país. Virou uma disputa
de marqueteiro. As pessoas que estão na rua com
propaganda o fazem por DINHEIRO.
É emprego, não convicção. É mais uma evidência da
crise de participação e representação. Creio que
Lula, porém, que ainda é a maior liderança popular
que temos, percebeu isso, e foi o grande destaque
dos comícios e intervenções nessa campanha, porque
fez a leitura da situação da luta de classes, e
defendeu a necessidade de uma assembleia
constituinte para fazer uma profunda reforma
política, que recoloque o povo, a militância e a
luta por ideias e projetos no centro da disputa.
O peso da correlação de forças explica, em parte,
o engessamento de muitas bandeiras progressistas.
Por que em 12 anos de governos progressistas não se
conseguiu mudar essa correlação de forças?
Stédile-- Por vários fatores conjugados. A
derrota de 89, a hegemonia do neoliberalismo e
império onipotente dos Estados Unidos, impuseram uma
derrota política, econômica e ideológica a toda
classe trabalhadora no mundo. Essas derrotas, em
geral demoram uma geração para que a classe entenda,
amadureça e volte a tomar iniciativa da luta. O
processo de desindustrialização de nossa economia,
por outro lado, quebrou a espinha da classe operária
industrial, que era nosso setor mais organizado,
mais forte e mais politizado, no qual Lula e o PT
foram gerados. Estamos ainda vivendo uma crise
ideológica na esquerda mundial. Falta-nos um projeto
claro de transição do capitalismo para o socialismo.
Isso tudo dificulta a construção de processos
unitários e de programas de curto prazo para as
forças populares, que mudem a correlação de forças.
E por fim, porque o PT, sendo o maior partido de
esquerda, como disse, não conseguiu levar adiante a
formação política e a disputa ideológica entre seus
militantes e na sociedade. Não se pode conceber que
um partido que tenha 800 mil filiados, não tenha
cursos de formação política, não tenha sequer um
jornal nacional que oriente e debata com a
militância política
Em que medida o monólogo conservador da mídia
interdita essa mudança na correlação de força?
Stédile-- A burguesia faz sua parte para
manter a hegemonia econômica, política e ideológica
na sociedade. Ela não fica esperando por nós. Para
isso, controla e opera três instrumentos políticos
simultaneamente. Em primeiro lugar, tem o controle
absoluto do poder judiciário --basta ver o
comportamento do STF no processo AP 470, ou a
desfaçatez de juízes que se atribuem um auxílio
moradia de 4.600, reais por mês, ao mesmo tempo em
que não hesitam em autorizar ações de despejo contra
todas ocupações dos que lutam pelo direito à
habitação . Em segundo lugar, controla o parlamento,
cada vez mais refém das 117 empresas que financiam
90% das campanhas dos candidatos nesse país.
Transformaram o parlamento num balcão de negócios e
trincheira de ideias conversadoras para a destruição
dos direitos conquistados desde 1988, na
Constituinte. E por último, controla de forma
absoluta os meios de comunicação de massa. A Globo é
hoje o principal partido ideológico da burguesia
brasileira. É ela que exerce o papel de orientador
político e de formação ideológica das massas, com as
ideias da burguesia. Por isso é fundamental uma
reforma política ampla e profunda, que envolva não
só a forma de eleger os candidatos ao governo e ao
parlamento.
Mas também o papel do poder do judiciário e a
democratização dos meios de comunicação. Sem isso
não teremos democracia. Nem a burguesa!
Diante da fragilidade de suas apostas eleitorais,
o conservadorismo já faz baldeação para um outro
comboio: a tese de que um 'ajuste doloroso' na
economia será inevitável em 2015, ganhe que ganhar.
Trata-se de uma tentativa de desossar um segundo
governo Dilma por antecipação?
Stédile -- A burguesia usará todas as armas
que mencionamos para radicalizar a subordinação do
Brasil à economia dos Estados Unidos, vale dizer,
aos interesses dos bancos e das corporações
internacionais. Querem o país como mero exportador
de commodities, minerais, energéticas e agrícolas.
Mas isso não gera empregos e nem desenvolve a
economia. O pré-sal pode ter um papel, porém
setorial. Nós, dos movimentos sociais, lutaremos
para que haja mudança efetiva. Isso inclui mudar a
política burra do superávit primário para pagar
juros a 15 mil famílias, e redirecionar os recursos
a investimentos produtivos, educação, saúde e
transporte público. Precisamos de uma reforma
tributária que inverta a matriz atual, que só
penaliza os trabalhadores. O governo deve controlar
a taxa de juros, não só a Selic, mas também as taxas
impostas pelos bancos ao povo, que paga em média 48%
de juros ao ano. E intervir no câmbio, para evitar
que a indústria brasileira esfarele. Finalmente, é
urgente revogar a lei Kandir. Essa é um absurdo.
Bilionárias exportações de commodities minerais,
energéticas e agrícolas não pagam imposto no Brasil.
Um DINHEIRO que
poderia contribuir para investir em serviços
públicos é legalmente sonegado à população. A Vale
do Rio Doce, por exemplo, exportando bilhões e
bilhões de toneladas de ferro e não paga nada de
imposto. Somos o maior exportador de soja do mundo.
E ninguém paga imposto! Na Argentina, os
exportadores de soja pagam 40%. Como se vê, será um
período de intensa disputa, em torno dos rumos da
política econômica. E se a mudança frustrar o
interesse dos trabalhadores, entraremos numa crise
política grave.
O que você diria à juventude que hesita em votar
em Dilma pelas razões discutidas acima?
Stédile --A juventude tem direito a ser
desconfiada e votar em quem quiser. Há motivos para
não acreditar até maiores do que para acreditar. Em
função da conjuntura histórica exposta aqui, vivemos
um período em que a juventude esteve ausente da
política, e não pôde participar de nenhuma
instituição. Nem na igreja, nem nos sindicatos, nem
nos partidos. E muito menos nos governos, que só
chamam as lideranças na hora em que a água ferve.
Então, a juventude esta desanimada com a política
institucional. É saudável. Se estivessem satisfeitos
já estariam velhos e conservadores. Mas ela precisa
participar da política de outra forma e mais
intensa. Agora mesmo no mutirão do plebiscito pela
Constituinte da reforma política, a condução do
processo foi basicamente da juventude. Não basta,
porém. Ela precisa se vincular às organizações da
classe trabalhadora, para que juntos possamos
construir um programa unitário de mudanças. Protesto
é só o começo. Ele não constrói a mudança. A s
mudanças virão de um programa unitário, que consiga
aglutinar as forças organizadas do povo, da classe
trabalhadora, tendo a juventude como participantes
ativos. Nas eleições acho que a juventude vai ficar
entre abstenção, voto nulo, voto na Dilma e na
Luciana Genro. Percebo que a juventude que votou na
Marina em 2010 desencantou-se com ela.
No documentário, 'Em busca da terra sem veneno',
você aponta a necessidade de um aggiornamento da
bandeira da reforma agrária. Que reforma agrária
responde aos desafios do século XXI?
Stédile-- No século passado, a reforma
agrária respondia a uma necessidade de democratizar
a propriedade da terra. A luta principal, portanto,
era contra o latifúndio, em geral improdutivo. De um
modo geral, esse programa de reforma clássico
ocorreu no âmbito de governos burgueses
nacionalistas. No Brasil, nunca conseguimos fazer
esse tipo de reforma agrária. O mais próximo disso
ocorreu na crise de 64, com a proposta de reforma do
Celso Furtado- Goulart. O MST se desenvolveu com
base nesse programa, de terra para quem nela
trabalha.
Infelizmente, ele não se realizou no Brasil. Agora,
com o capitalismo financeiro e as corporações
transnacionais dominando a agricultura, a disputa
não é apenas por terra. A disputa é pelo modelo de
produção agrícola. A disputa é pelo destino dos
recursos naturais. Precisamos mudar o modelo. Em
primeiro lugar, para produzir alimentos sadios a
toda sociedade. Comida sem veneno. Ao mesmo tempo,
adotar a matriz tecnológica da agroecologia:
produzir em equilíbrio com a natureza, sem destruir
a biodiversidade que altera o meio ambiente e o
clima. E precisamos organizar agroindústrias na
forma cooperativa, para processar esses alimentos.
Por isso, agora estamos diante de um novo modelo que
chamamos de reforma agrária popular.
Essa é uma bandeira que não interessa apenas ao
camponês, que antes queria apenas terra para
trabalhar. Agora, as mudanças, interessam a todo
povo. Interessa a quem não quer adoecer ou morrer de
câncer por conta da ingestão de agrotóxico, que tem
no Brasil o maior consumidor mundial. Interessa aos
que sofrem na cidade, expulsos do campo; e aos que
se preocupam com a desordem climática em curso, como
o demonstra a falta de água em São Paulo. Esse será
o futuro da agricultura, e na verdade, a única
possibilidade de sobrevivermos.
Assista ao documentário ‘Em busca da terra sem
veneno’
(Extraído do portal Carta Maior)
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