Calixtre: Dilma
nasceu da luta por uma democracia efetivamente
popular
André Calixtre*
A resposta de Dilma às ruas leva-nos
a compreender o significado simbólico da sua
trajetória de vida. Assim como Lula e Marina, Dilma
formou-se no contato direto da experiência
modernizante-conservadora da ditadura militar. Mas
nasceu politicamente não nas greves, mas na tortura
de um Estado de exceção criado para garantir
privilégios, contra o projeto de uma democracia
popular.

O sentimento genuíno e concreto de
ausência na política atual, que emergiu em termos
nacionais durante as manifestações de junho de 2013,
resultou em dois processos antagônicos de mudança no
País: a retomada do projeto de Democracia Popular,
centrada nas reformas de base, em especial a Reforma
Política; e a retomada do Salvacionismo, força
política tradicionalmente conservadora que,
empenhando abstrações como a unidade nacional e o
governo das pessoas boas, valem-se da leveza
ufanista para negar conflitos graves existentes no
interior da sociedade brasileira.
Diante dessa clivagem entre projetos, é inevitável
perceber como a candidatura de Dilma Rousseff tende
a se aproximar mais das reformas de base enquanto a
candidatura de Marina Silva vai adotando uma
plataforma essencialmente moralista.
Mesmo reconhecendo que determinados pontos
explícitos no programa desta última sejam superiores
em formulação quando comparada às propostas do campo
dilmista, é fundamental compreender que o grau de
conflito interno provocado entre as forças
concentradoras da riqueza e a atuação política de
Dilma é da mesma natureza do conflito de todo o
ciclo político do "lulismo".
Porém em maior intensidade, cuja polarização recente
revela como a possibilidade de superação do modelo
de desenvolvimento atual para uma "democracia de
maior intensidade" está nas mãos de Dilma e não de
Marina.
Marina teria de vencer novamente todos os "pedágios"
dos donos do poder para consolidar-se como força
política, mantendo vetores progressistas ao longo do
tempo.
Fazer isso sem o mínimo de uma estrutura partidária
sólida, seja na nova ou na velha política, é muito
menos provável, ainda mais com o sentimento errático
de Marina em relação às bandeiras históricas
defendidas pela esquerda para a transformação
definitiva do Brasil.
No entanto, desde pronto as intensões progressistas
do programa de governo de Marina já foram checadas
pelo grande capital, já está capitulado.
Lula e Dilma já enfrentaram muitos pedágios – e
perderam outros –, mas, após as manifestações de
2013, a presidenta reagiu às demandas nas ruas com
algo além de vagas promessas.
Pressionando a aprovação de projetos que estavam em
tramitação no Congresso Nacional ou agindo com as
atribuições do Executivo, Dilma recebeu os
movimentos sociais e construiu uma agenda de longo
prazo, com um conteúdo altamente democrático e
progressista para nossos padrões atuais, centrado
nos seguintes pontos:
- Estatuto da Juventude, criando um marco
estruturante na inclusão dos jovens numa sociedade
em que eles já se configuram como o grupo mais
representativo;
- Marco Civil da Internet, garantindo direitos
permanentes ao caráter cidadão da Internet,
protegendo o usuário dos grandes interesses
econômicos;
- Lei dos Royalties do Pré-sal para Educação e Saúde
criou um fundo estratégico de financiamento de
patamares superiores políticas públicas nas áreas de
educação e saúde;
- Plano Nacional de Educação, viabilizado pela lei
do Pré-sal, garantirá níveis adequados de
financiamento (10% do PIB);
- Política Nacional de Participação Social, que
inovou ao reconhecer formas de participação com
redes digitais e que, junto com o Marco Civil da
Internet e a expansão do acesso à banda larga,
transformará o Brasil no primeiro grande celeiro
para a hiperdemocracia;
- Marco Regulatório das Organizações da Sociedade
Civil, que criou novo patamar de relação entre o
Estado e a Sociedade, garantindo estruturas de
controle dos recursos públicos e ampliando a
capilaridade das políticas públicas por meio das
organizações sociais;
- Programa Mais Médicos, que mudou em pouco tempo o
paradigma de atuação do sistema público de saúde,
ampliando o atendimento para milhões de pessoas;
- O fortalecimento de obras de mobilidade urbana no
PAC2, dialogando com o motivo primário que levou os
jovens às ruas em 2013;
- E o apoio à Reforma Política, a mãe de todas as
reformas de base, cuja proposta enviada ao Congresso
Nacional, no entanto, foi derrotada pelas forças
conservadoras. Hoje, a saída é o plebiscito para uma
Constituinte exclusivamente eleita para encaminhar
essa grande demanda das manifestações de junho de
2013.
A resposta de Dilma às ruas leva-nos a compreender o
significado simbólico da sua trajetória de vida.
Assim como Lula e Marina, Dilma formou-se no contato
direto da experiência modernizante-conservadora da
ditadura militar, no entanto, as contradições
criaram trajetórias muito distintas.
Lula, como dito antes, é o conflito da modernização
com a pobreza, emerge dos povos retirantes para o
centro da industrialização brasileira como um líder
nato, de incomum capacidade de intuição e decisão
política.
Marina é o conflito da modernização com a tradição,
cuja resultante está no sentido da civilização
ocidental, questionando fundamentos basilares das
sociedades urbano-industriais, como é o caso da
própria política.
E Dilma? É o conflito da violência conservadora
contra a utopia social. Dilma nasceu politicamente
não nas greves, nem nos "empates", nasceu na tortura
de um Estado de exceção criado para garantir
privilégios dos donos do poder, contra o projeto de
uma democracia efetivamente popular.
Essa referência simbólica demonstra as reais
possibilidades de que o campo político de Dilma
possui vida própria no sentimento nacional, está
conectado com a história do Brasil, e não se trata
apenas um prolongamento do "lulismo".
Se Marina tivesse sido capaz de manter sua dimensão
simbólica sem aderir às teses neoliberais que
operarão invariavelmente para destituir a "Nova
Política" de tudo o que poderia ser novo, o debate
com Dilma ganharia uma polarização simbólica
extraordinária entre projetos.
Mas a capitulação de Marina reforçou as forças
transformadoras do projeto dilmista, desenhado
concretamente na reação propositiva às manifestações
de junho.
A "Nova Política" está fora de lugar, encontra-se na
dureza simbólica de Dilma, que antes enfrentou com
sonhos o fascismo e agora quer reconduzir a
Democracia Popular para o centro da dinâmica social
brasileira.
* André Calixtre é mestre em Economia
Social do Trabalho e doutorando em História
Econômica, ambos pelo programa de Desenvolvimento
Econômico do Instituto de Economia da Unicamp
publicado no