Estados Unidos
Quando o dinheiro compra
a democracia
Gerardo Pisarello
A
degradação do princípio democrático nos Estados
Unidos não é nenhum segredo. Portas giratórias,
corrupção desenfreada, apropriação frequente do
potencial regulador por parte daqueles que deviam
ser regulados. São todas elas expressões da
penetração desmedida do dinheiro na vida política.
Naturalmente, o fenômeno não se circunscreve à terra
do multimilionário Warren Buffet. Mas tem nela um
laboratório de exceção. Há poucos dias, o Supremo
Tribunal dos EUA determinou abrir mais uma via para
o domínio de 1% da população sobre os 99% restantes
(da população estadunidense. Nota da Redação). E
fê-lo num âmbito chave: o financiamento privado dos
partidos.
A
introdução de restrições às doações privadas aos
partidos foi uma resposta ao escândalo de Watergate,
nos anos 70 do século passado. As leis que as
tornaram possíveis permitiram ao princípio
democrático ganhar fôlego. Mas durou pouco.
Primeiramente, veio a desregulamentação financeira,
a qual varreu de um golpe a Lei Glass Steagall,
aprovada nos idos de F. D. Roosevelt. Depois, chegou
o turno do financiamento dos partidos. Em 2010, o
Supremo Tribunal deu um passo decisivo para
favorecer a influência dos megapoderes econômicos na
vida política. No caso Citizens United contra a
Comissão Eleitoral Federal, determinou anular os
limites máximos com que as empresas podiam
contribuir nas eleições federais. Seu argumento
principal foi que as contribuições empresariais
estavam protegidas pela Primeira Emenda, que
consagra o direito à liberdade de expressão. Ao
darem dinheiro aos partidos, as empresas falavam,
emitiam uma opinião “independente”. E essa opinião
devia ser tutelada.
Esta atribuição de direitos humanos às megaempresas
permitiu, na hora, que as Agências de Qualificação
da Dívida pudessem contornar sanções e
responsabilidades penais. E foi o que fez com que a
eleição presidencial de 2012 se convertesse na mais
cara da história dos Estados Unidos.
O
Tribunal determinou aprofundar nessa linha. Anulou,
por cinco votos contra quatro, as limitações ao
montante total que um indivíduo pode doar a
candidatos e partidos. A decisão foi redigida pelo
presidente do Tribunal, John Roberts, indicado para
esse cargo, em 2005, por George W. Bush. O
promovente do caso era o empresário Shaun
McCutcheon, doador tradicional do Partido
Republicano. Na sua argumentação, o juiz Robert nega
que essas doações possam, por si próprias, ser fonte
de corrupção. Segundo Roberts, o único tipo de
corrupção acerca da qual o Congresso poderia
legislar seria aquela na qual houvesse uma
contraparte direta. Sem a evidência desse ‘quid pro
quo’, as restrições às contribuições privadas seriam
uma ameaça “à liberdade de expressão e ao direito
das pessoas de participarem no debate público”.
Com
a nova decisão, continuarão existindo limites para
as doações que um ente particular pode fazer a um
candidato concreto. Contudo, sumirão os topos ao
montante total que poderá entregar a candidatos
federais, partidos e comitês eleitorais, num mesmo
ciclo eleitoral. Ao ser tornada pública a sentença,
houve manifestações de protesto em diferentes
cidades. Para o próprio jornal The New York Times,
a decisão faz parte de “uma cruzada encaminhada a
desmontar as barreiras do poder de distorção do
dinheiro na política estadunidense” e a permitir que
“os interesses dos norte-americanos mais ricos
tenham maior consideração que os legisladores”. O
presidente da organização dos direitos humanos
Public Citizen, Robert Weissman, denunciou o
pronunciamento como sendo uma decisão favorável à
plutocracia. E sustentou que jamais a Primeira
Emenda pretendeu “entregar um megafone gigante aos
mais ricos, para que bradem nos nossos ouvidos”.
Igualmente demolidor foi Robert Reich, ex-secretário
do Trabalho durante o governo de Bill Clinton e
analista socioeconômico. Segundo Reich, produtor de
um excelente e inquietador documentário, intitulado
Inequality for all (Desigualdade para todos),
a decisão permitirá aos mais ricos “comprarem votos
para pagarem menos impostos, receberem resgates e
subvenções públicas e realizarem seus negócios com
menos regulamentações”. Isso permitirá “que se
tornem mais ricos e possam comprar ainda mais
votos”.
As
palavras do ex-secretário do Trabalho são qualquer
coisa menos exageradas. Com a decisão do caso
McCutcheon em mão, calcula-se que um indivíduo
poderá doar quase US$ 6 milhões a partidos, comitês
de campanhas e a candidatos em cada ciclo eleitoral.
Um dos magistrados dissidentes tem sido menos
otimista e sustentou que o único limite que se deixa
em pé “é o infinito”. Tudo isso em meio de um
contexto em que 1% mais rico da população se
apropriou, desde 2009, de 35% dos bens privados e de
95% dos ganhos produzidos.
Nas
terras de Bárcenas e Millet, de Gurtel e Pretória,
nas quais, frequentemente, o Tribunal de Contas é
cego e mudo e nas quais a linha divisória entre os
partidos e o poder imobiliário é quase indefinida,
nada disso poderia escandalizar alguém. Contudo,
mostra uma tendência inquietante. Segundo uma
recente sondagem da Gallup, oito em cada dez
norte-americanos são a favor de que se introduzam
limitações nas despesas das campanhas e nas doações
entre os partidos. Mas tanto faz. A plutocracia é
isso: a compra e destruição da democracia pelas mãos
da minoria endinheirada. Tal como diz Reich: “A
corrupção alimenta a corrupção”. (Extraído de
Other News).