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Julio Cortazar
Cem anos do ‘cronopio’ maior
A América
Latina comemora o centenário do grande ‘cronopio’:
Julio Cortazar, escritor lembrado por seus textos
lúdicos, de romances plausíveis de rearmar e contos
que vencem por nocaute, pontos de partida de uma
obra que incorporou o compromisso político e
expressou uma nova noção do intelectual orgânico,
aquele que planta a ideia das utopias possíveis.
Julio
Cortázar com Roberto Fernández Retamar, na sede da
Casa das Américas, Cuba, 1979.
"Eu compreendi
que o socialismo, que até esse momento me tinha
parecido uma corrente histórica aceitável e,
inclusive, necessária, era a única corrente dos
tempos modernos que era baseada no fato humano
essencial", refletia o escritor, em uma carta
endereçada ao poeta cubano Roberto Fernández Retamar,
em 1967.
Em 26 de agosto
de 1914, no prelúdio da Primeira Guerra Mundial,
quando a Alemanha ocupou Bruxelas, nasceu na
Bélgica, de pais argentinos, Julio Florêncio
Cortazar Descotte, rapaz que na infância compôs seus
primeiros exercícios literários, aos quais
acrescentaria a escrita de sonetos, seu gosto pelo
jazz e pelo boxe.
"Quando já
tinha 30 ou 32 anos — à parte de uma grande
quantidade de poemas que andam por aí, perdidos ou
queimados — comecei a escrever contos", relata
Cortazar a Luis Harss, no livro Los Nuestros
(Os Nossos).
Na época da sua
primeira publicação: Presencias (Presenças –
1938), sob o pseudônimo de Julio Denis, se dedicou a
dar aulas na cidade e província de Buenos Aires, uma
altura na qual levava no seu interior um sentimento
de inconformidade política que mais adiante
converteria em maturidade política.
Sua oposição ao
peronismo — que depois afirmou não ter compreendido
— o levou a ocupar a Faculdade de Filosofia, na
província de Mendoza, em 1945, como uma forma de
protesto. Mais tarde, exilou-se na França, junto da
sua companheira Aurora Bernárdez, e trabalhou como
tradutor na Unesco.
No fim dessa
década publicou seu primeiro conto; Casa tomada,
na revista Anales, de Buenos Aires, dirigida
por José Luis Borges e se torna mais prolífico a
partir desse tempo, publicando Bestiario
(1951); Manual de Instrucciones (Manual de
Instruções – 1953); Final de juego (Fim do
jogo – 1956); Las armas secretas (As armas
secretas – 1959); Historia de Cronopios y Famas
(História de Cronopios e Famas) e Rayuela
(1962).
A UTOPIA
REALIZÁVEL
Cortazar
junto de sua terceira esposa, Carol Dunlop.
Foi em 1961
quando teve lugar um ponto de inflexão na vida do
escritor, ao visitar Cuba, acompanhado de sua
segunda esposa, Ugné Kervelis, tradutora lituana, da
esquerda, apaixonada pela América Latina, a qual o
acompanhou em um processo de reflexão que o levou a
se converter em um defensor da Revolução Cubana.
"Sem
raciocinar, sem análise prévia, me deparei de
repente com o sentimento maravilhoso de que meu
caminho ideológico coincidisse com meu retorno
latino-americano; de que essa revolução, a primeira
revolução socialista que eu podia acompanhar de
perto, fosse uma revolução latino-americana", disse
em uma carta a Fernández Retamar, publicada na
revista da Casa das Américas.
"Esse é o
momento em que estendi os laços mentais e em que eu
me perguntei, ou me disse, que eu não havia tentado
entender o peronismo", reflete em uma conversa com
Omar Prego, publicada em La Fascinación de las
palabras (O Fascínio das palavras – 1985).
Esse contato
com a Revolução Cubana faz acordar em Cortázar um
novo tipo de sensibilidade que representa uma
guinada em sua obra, que se torna evidente em textos
como Reunión (Reunião), relato incluído no
volume Todos los fuegos, el fuego (Todos os
fogos, o fogo); ou o poema Yo tuve um hermano (Eu
tive um irmão); ou a adivinha Sílaba viva,
dedicados a Ernesto Che Guevara.
O escritor
desafiará as correntes intelectuais, ao assumir a
literatura como um espaço no qual será travada a
batalha política, propondo novamente a interpretação
do mundo através da estética que o caracterizou, o
uso de meta textos e a ordem combinatória de
linguagens.
CONTRA OS
VAMPIROS MULTINACIONAIS
Na hora de
defender seus ideais políticos, Cortazar advertiu em
uma entrevista na revista Crisis (1973) que
"cada pessoa tem suas metralhadoras específicas. A
minha, por exemplo, é a literatura, disse, referindo-se
a sua obra recente, Libro de Manuel (Livro de
Manuel), na qual sustenta ter juntado as águas dos
problemas latino-americanos.
A obra
incorpora elementos de não ficção, ao introduzir no
texto depoimentos de torturas e notas da imprensa,
as quais denunciavam o atropelo aos movimentos da
esquerda no Cone Sul, em meio de um relato sobre um
grupo de revolucionários latino-americanos que
moravam em Paris.
"Este relato
foi escrito quando os grupos guerrilheiros estavam
em plena ação. Eu conheci pessoalmente alguns dos
protagonistas aqui em Paris; e fiquei aterrorizado
por seu sentido dramático, trágico, de sua ação",
comenta Cortazar a Prego acerca de seu romance,
cujos direitos de autor foram doados na Argentina
aos presos políticos.
Em 1975
publicou Fantomas, contra os vampiros
multinacionais, uma utopia realizável, romance curto
onde incorpora a ficção, a historieta e documentos
fac-similares, com o objetivo de criar um relato que
divulgasse a sentença do Tribunal Russell II, que em
setembro de 1973, em Bruxelas, berço do escritor,
denunciou os atropelos aos direitos humanos na
América Latina.
O autor lança
mão de várias linhas narrativas recriando o formato
pulp fiction, em uma história sobre uma
queimada mundial de livros, um fato de ficção que
aponta o dedo para os vilões reais: as empresas
multinacionais e os governos lacaios do Cone Sul,
dirigidos na época por ditaduras militares.
Fantomas
defronta o mal se aliando a intelectuais
latino-americanos, entre eles o narrador Cortazar, o
qual desmascara os verdadeiros vilões com um
documento verídico: as atas reais do Tribunal
Russell II, continuação do primeiro que denunciara
os crimes do Vietnã, em 1966.
A sentença
condena "os governantes dos Estados Unidos da
América e especialmente o senhor Kissinger, cuja
responsabilidade no golpe fascista do Chile se torna
evidente para o Tribunal".
Já nos fins da
década de 1970, Julio Cortazar, acompanhado de sua
terceira companheira, Carol Dunlop, é uma voz de
peso internacional, e faz oposição à ditadura
argentina de José Rafael Videla, critica a Guerra
das Malvinas e em 1983, como respaldo à Revolução
Sandinista, publica Nicarágua, tan violentamente
dulce (Nicarágua, tão violentamente doce).
Em 12 de
fevereiro de 1984, em Paris, despediu-se do mundo o
‘cronopio’ maior, escritor que renovou as formas do
relato e sobre elas a reflexão de que "o bom das
utopias é que são realizáveis". (Reproduzido de
Telesur).
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