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Havana. 23 Abril, de 2014

Gabo nunca está sozinho

Gabriel Molina

QUANDO foi publicada uma Reflexão de Fidel Castro, na quinta-feira 9 de julho de 2008, Gabriel García Márquez e Mercedes Barcha ficaram muito espantados pelo estonteante afeto do Comandante.

 “O que Fidel escreveu me deixou frio, gelado. Eu sinto a impressão de tê-lo conhecido ontem. Nunca o tinha visto assim, tão carinhoso”, comentou Gabo a alguns dos seus amigos cubanos...

 “Estava carinhoso e descontraído. Falou-se de tudo, de Birán, que antes visitamos com ele”, frisou Mercedes. “Sim, de muitíssimos temas, com profundidade e lucidez”, confirmou seu parceiro inseparável durante mais de 50 anos. E acrescentou: “Hoje de maneira nenhuma vou poder sair à rua”.

 Estava certo, depois dessas palavras que podem ter chegado através dos meios da imprensa, rádio e televisão a milhões de cubanos, seria até um desafio mostrar-se ao público. Se isso fosse dito por outro, até podia parecer exagerado, mas não foi assim. Referia-se ao que ocorreu no dia anterior, num dos restaurantes do hotel Meliá Cohiba.

 Eram passadas as 15 horas e o local estava quase vazio. Isso propiciou que logo após Gabo, Mercedes, Conchita Dumois e quem escreve este artigo, termos pedido o serviço, começassem a desfilar pela nossa mesa desde os funcionários do Meliá até os trabalhadores mais modestos, os quais queriam estreitar a mão do Gabo. Foram se atrevendo ainda mais, ao ponto de que já não conseguimos continuar conversando acerca do nosso terceiro encontro com o colega Angel Augier, a quem faltava pouco tempo para completar cem anos, dos quais apenas 50 tinham sido de solidão. Os fãs de García Márquez trouxeram livros, papéis e todo o tipo de souvenirs, para que ele assinasse e os dedicasse, e até pediam se fotografar com ele. Confesso que nesse momento teria gostado continuar usufruindo da sua faiscante conversa. Ele gostava falar daqueles tempos. Achei que ele acabaria perdendo a paciência por causa da interrupção. Mas acabei me enganando, ele era sempre assim, isento da sensação elitista que a celebridade provoca nalgumas pessoas. Poderia dizer que desfrutou de gozo quando as pessoas simples quebraram a timidez com a que se aproximam dos famosos.

 Esses momentos me fizeram lembrar um dia, dez anos antes, no Parque Lênin, quando um turista espanhol veio dizer-nos que lhe permitíssemos tirar uma foto. Pusemos como condição que nos enviasse a fotografia impressa e assim fez. É a única imagem que temos daqueles encontros dos seus colegas dos idos de 60. Conchita Dumois, a inesquecível viúva de Jorge Ricardo Masetti, era a responsável por estreitar esses laços, reunindo com Gabo, cada vez que ele vinha, o grupo de jornalistas e trabalhadores da Prensa Latina, que tínhamos sido os mais achegados ao argentino, naqueles tempos polêmicos: Ricardo Saenz e Joaquín Oramas, já falecidos, tal como a Conchita; Juan Marrero e também Marta Rojas, embora ela não trabalhasse na Prensa Latina, para comentarmos a atualidade, além de lembrarmos o passado.

 Muitas pessoas ficam delirando com o sucesso, especialmente se as glórias não são tão espetaculares e merecidas, como no caso dele. Depois de anos sem vermo-nos, não pude deixar de surpreender-me que não só ele continuava sendo o mesmo, mas que era ainda muito melhor. Conservava sua naturalidade.

 Gabriel García Márquez se havia tornado tão famoso, que às vezes sentia o peso, como na ocasião em que um personagem incógnito escreveu uma falsa carta de despedida, que circulou pela Internet, na iminência de sua não menos falsa morte. Comentei-lhe isso num dia e relatou que esse personagem e outros, em várias ocasiões, tinham feito coisas semelhantes.

 Talvez seja lamentável perder a intimidade, especialmente quando mais se precisa dela. Mas Gabo demonstrou que é mais importante saber conviver com a fama. No hotel Meliá continuou a manifestação de carinho, engenho e respeito que mostrou nas nossas três reuniões com Augier. Recebeu os louvores até que partimos com uma tranquila e surpreendente disposição que estimulava esses trabalhadores cubanos e espanhóis. Alguns lamentaram que não tinham livros seus nesse momento e lhes prometeu que os satisfaria.

 No dia seguinte lhe perguntei e resulta que já estava de retorno. Não devia ter-me espantado com isso. Por acaso podia duvidar das mostras de simplicidade que nos deu ao longo dos anos? Gabo era aberto como bom ribeirinho, morador das costas colombianas. Seu antigo alter ego daquelas aventuras, sob a batuta do argentino Jorge Ricardo Masetti e seu mentor Che Guevara, era o bogotano Plínio Apuleyo Mendoza quem, apesar da conotação greco-latina do seu nome, me parecia tão sociável como seu amigo de longa data, sei lá se era devido a que sua mesa na redação estava junto da minha.

 Quando falamos há uns cinco anos sobre Masetti e a fundação da Prensa Latina, García Márquez comentava-me que se sentia bem com aquele salário, bom não só para Cuba, que desfazia o hábito da época de pagar mal o trabalho jornalístico. Concordamos em que boa parte disso deve ter sido devido a Che Guevara, quem sofrera essa insegurança quando trabalhou como jornalista e fotógrafo durante os Jogos Pan-americanos de 1955, efetuados no México.

 Minha companheira Ana Maria García verificou essa curiosidade por tudo aquilo que o rodeava e esta atraente forma de ser que Gabo possuía, quando o viu pessoalmente, pela primeira vez, nos fins dos anos 90, numa loja do bairro Miramar, em Havana. Após reconhecê-lo, teve a ideia de perguntar-lhe o que ele achava acerca do desempenho dos colombianos no Mundial de Futebol e se gostaria de dar uma entrevista sobre esse tema. É bem conhecido que ele furtava o corpo, diante de tantos pedidos para entrevistá-lo, que lhe faziam em todos lados. Escutei-lhe dizer em mais de uma ocasião: “jacaré não come jacaré”. Porém, aquela pergunta resultara original: voltou-se para Mercedes e lhe comentou que nunca lhe haviam pedido uma entrevista sobre esportes, e ainda menos de futebol, onde os jogadores “parecem-se com pintinhos correndo desenfreados atrás de uma bola”. Concedeu-lhe a entrevista e a publicamos no semanário Granma Internacional. Também a publicou amplamente o jornal Sud Ouest, que na hora era um dos de maior tiragem na França.

 Os trabalhadores do Granma Internacional ficaram encantados, em agosto de 2001, com seu engenho desbordante, quando acedeu a entrar e cumprimentá-los antes de partirmos, para depois subir oito pisos caminhando, pois o elevador do edifício onde morava Angel Augier, em Habana del Este, estava avariado. No trajeto, não deixei de regozijar-me, mais uma vez, de sua condição natural. Ele gostava de cantar — numa ocasião fez isso numa boate de Paris, para se ajudar com as despesas cotidianas — e desfrutava compartilhando amenas conversas, boa música e alegres drinques. Gostava imenso dos boleros e quis compor alguns, mas não ficou satisfeito com suas tentativas; também adorava os vallenatos (canções folclóricas colombianas). Dizia que sua obra “Cem Anos de Solidão era um vallenato de 450 páginas”.

 O García Márquez que deixou Fidel impressionado não era só o escritor e jornalista fora-de-série, que o mundo admira e adora, mas também um ser humano extraordinário, que lhe retribui com um carinho não menor. Pessoalmente constatei isso numa das últimas vezes que compartilhamos, recolhendo com Conchita suas memórias quando trabalhou na Prensa Latina, para um livro sobre Masetti. Nesses dias a vida do comandante corria grave perigo. E García Márquez interrompia cada cinco minutos para repetir-me: como estará Fidel? Nem se lembrava de que a saúde dele também estava quebrantada.

 Por essas coisas, ficaram tão empolgados com o que escreveu Fidel acerca dele e da Mercedes. Nesta hora lutuosa, desejo transcrever alguns desses sentimentos do comandante: “Determinei descansar. Preferi reunir-me com Gabo e sua esposa Mercedes Barcha, que estão de visita em Cuba até o dia 11. Tinha imensos desejos de trocar ideias com eles, para rememorar quase 50 anos de sincera amizade! (...) “Nunca tive o privilégio de conhecer Aracataca, o pequeno povoado onde nasceu Gabo, embora tive o privilégio de comemorar com ele meu 70º aniversário em Birán, aonde o convidei (...) Nossa amizade foi fruto de uma relacionamento cultivado durante muitos anos, nos quais o número de conversas, sempre para mim amenas, somaram centenas. “Falar com García Márquez e com Mercedes sempre que visitavam Cuba — e era mais de uma vez ao ano — se convertia numa receita contra as fortes tensões que, de forma inconsciente, mas constante, experimentava um líder revolucionário cubano”.

 “Na própria Colômbia, com motivo da 4ª Cúpula Ibero-americana, os anfitriões organizaram um passeio de carruagens pelo recinto rodeado de muralhas de Cartagena (...) Os companheiros da Segurança cubana me tinham dito que não era conveniente participar do passeio programado. Pensei que se tratava de uma preocupação excessiva, já que como tudo era tão secreto, os que me informavam desconheciam dados concretos. Eu sempre respeitei seu profissionalismo e cooperei com eles”.

 “Chamei o Gabo, que andava por perto, e lhe disse gracejando: ‘Monta conosco neste carro para que não nos disparem!’ Assim fez. E a Mercedes, que ficara no ponto de partida, disse-lhe no mesmo tom: ‘Você vai ser a viúva mais jovem’. Não esqueça! (...) Depois, eu soube que lá aconteceu a mesma situação que em Santiago do Chile, quando uma câmera de televisão que continha uma arma automática apontou para mim, durante uma entrevista, mas o mercenário que a operava não se atreveu a disparar. Em Cartagena estavam com fuzis de mira telescópica e armas automáticas, emboscados num recanto das muralhas, e de novo tremeram aqueles que deviam apertar o disparador. A justificação foi que a cabeça de Gabo se interpunha, obstruindo a visão...”

 Andar com Fidel pelo mundo tinha esse risco.

 No fim do artigo, Fidel escreveu que Gabo não gostava de pronunciar discursos. Contudo, o comandante qualificou de joia o que ele fez ao receber o Prêmio Nobel: “Os inventores de fábulas que acreditamos em tudo, sentimo-nos no direito de acreditar que ainda não é tarde demais para empreendermos a criação da utopia contrária”.

 “Uma nova e arrasadora utopia da vida, onde ninguém possa determinar por outros até a forma de morrer, onde deveras seja certo o amor e seja possível a felicidade, e onde as estirpes condenadas a cem anos de solidão tenham por fim e para sempre uma segunda chance sobre a terra.”

 Não há muito tempo, conversando com García Márquez e com Mercedes, disse-lhes que, segundo minha opinião, ele tinha resgatado nosso nome comum. Olharam-me sem compreender e preferi deixar isso aí. Deveria então ter-lhes contado de um personagem famoso na minha infância que se chamava Miguel Gravier, muito conhecido por ser um magnata da rádio. E por causa do Gravier, ninguém me dizia Gabriel, mas sim Gravier ou Grabiel, o qual muito me incomodava, ao ponto que quando as pessoas me perguntavam apenas dizia meu sobrenome. A partir de sua saga, todo mundo o pronuncia bem e já não me incomoda. Agora, quando infelizmente já não está conosco, posso desafia-lo, sem medo de que possa parecer um louvor. Pois em verdade é uma homenagem muito singela, muito íntima e sincera. Não é só uma verificação pessoal. Porque ele reivindicaria o jornalismo ético. Sei que García Márquez nunca mais voltará a estar sozinho. Um dia, disse que ele era dos que se enterram com os amigos. Agora superou a ideia: suas cinzas estarão sempre no ar dos seus amigos.

 

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